RIACT N.5

Tema:
Investigação artística
da ‘projecção espacial’
e da ‘plasticidade corporal’ nos
campos da dança
e da pintura


“From the Heliconian Muses let us begin to sing, who hold the great and holy mount of Helicon, and dance on soft feet about the deep-blue spring and
the altar of the almighty son of Chronos, and, when they have washed their tender bodies in Permessus or in the Horse’s Spring or Olmeius, make their fair, lovely dances upon highest Helicon and move with vigourous feet.”

Hesíodo, Theogony

“Heeding Cunningham’s unusual approach to collaboration, Rauschenberg often worked independently with little guidance. […] Frequently dance, music, and decor came together only at the time of final rehearsals. Rauschenberg recalled, <<It was the most excruciating collaboration, but it was the most exciting, and most real, because nobody knew what anybody else was doing until it was too late.>>”

Jennifer Sarathy, Rauschenberg and Cunningham, https://www.rauschenbergfoundation.org/art/lightboxes/rauschenberg-and-cunningham

Ao regressarmos ao mundo grego e ao período em que a dança se interligou com a pintura em cerâmica — tanto a de formas pintadas a negro sobre fundo vermelho, como a de formas pintadas a vermelho, fruto de “reservas” abertas nos fundos negros —, deparamo-nos com narrativas que expressam ritmos corporais cujas necessidades e orientações espirituais escapam ao nosso entendimento e afectação. Como nos indica Valérie Toillon: “Il est généralement admis que la danse en Grèce ancienne est, au moins depuis l’âge du bronze, intimement associée aux pratiques cultuelles en tant que moyen de communication privilégié permettant d’établir le contact avec le divin (…). Bien que ces rites, que l’on rattache aux « cultes à mystères », nous soient connus par les sources antiques, les danses et les états frénétiques qui leur sont associés nous restent en partie méconnus.” *

* Valérie Toillon, “Danse et gestuelle des ménades : textes et images aux ve-ive s. av. J.-C”, in Théologiques, 25 (1), 55–86, 2017. https://doi.org/10.7202/1055240ar 

Olhando para essas realidades distantes, embora também nos agrade designá-las de realidades “paralelas”, que vemos realmente? A transcendência do poder congregador de uma mitologia que se encontrava com a natureza humana na forma de uma ânfora? Deduzimos e reconstituimos a função dessas peças de cerâmica no quotidiano dos gregos? Sim, fazemos estas inferências e imaginamos uma vida extra-quotidiana que se reflecte nas situações pintadas, sendo, no fundo, peças que entrecruzam duas narrativas, a saber: a narrativa inerente ao “sistema dos objectos” desse quotidiano, isto é, a diversidade de artefactos de cerâmica pintada, cada um com a sua especificidade de uso, e, por outro lado, o enlevo espiritual e mitológico que transe a vida helénica e que vem tocar-nos no presente. Na verdade, tudo isto aí se desenrola com uma cadência própria, projectando-se segundo as mediações específicas das duas expressões aqui em apreciação. Sucede que este conjunto de ritmos não se esgota na figuração emprestada à mitologia nem ao embelezamento dos objetos, sendo antes um fluxo que traz entrelaçadas pintura e dança, sem fins estritamente representativos, sem subserviência de uma para com a outra. Ou seja, nos exemplos mais fecundos desta confluência de expressões artísticas, nos casos em que a intermedialidade realmente funciona e desfaz hiatos criativos, abrindo espaço a um coabitar tenso e harmonioso de meios expressivos, não há grande destrinça a fazer entre a plasticidade corporal da pintura e a plasticidade dos corpos que dançam, ocorrendo o mesmo entre a projecção espacial de ambas.

A dança, seja a de tempos remotos, seja a actual, como é consabido, tende a ser um fluxo que se caracteriza pelo encadeamento de movimentos de imersão, suspensão, e de novo emersão, desenvolvidos de forma impetuosa (seja para a expansão, seja para a contenção expressiva), movimentos longamente ensaiados, mesmo que espontâneos no seu recorte aparente. Estes procedimentos são similares aos do pintor, que lança matéria plástica (bidimensional ou tridimensional), tirando partido concertado da propagação dessa matéria no espaço, intensificando ou atenuando a marca dos seus gestos nas superfícies e objectos que seleciona para a sua instalação pictural. Esta similitude pode dar origem à constatação de que o entrelaçamento da pintura com a dança (às quais se pode juntar a música, ou outras mediações expressivas), pode consistir numa colaboração e numa desapossessão extrema (“excruciating collaboration”), em relação à qual, por vezes, “nobody knew what anybody else was doing until it was too late”, como afirma Rauschenberg em epígrafe.

O Nº5 da RIACT tenta explorar estas e outras confluências a partir de duas orientações predominantes: investigação artística, ou seja, investigação fortemente enraizada na prática coreográfica e pictural, e, paralelamente, investigação através das artes, pois, algumas das propostas aqui apresentadas materializam na dança e no movimento do corpo determinadas finalidades extra-artísticas (como está bem patente no texto de Miguel Santos), isto é, trabalham com um duplo horizonte de indagação, tendo a dança como elemento determinante mas não exclusivo. Esta edição da RIACT tem ainda a particularidade de os quatro textos admitidos pela “revisão por pares” enveredarem pelo movimento na área da dança, ainda que quase todos contenham uma forte componente plástica e visual (fotografia, design gráfico, desenho), nomeadamente os trabalhos de Joana Franco, de António M Cabrita e São Castro.

Permitam-nos terminar este editorial com uma referência especial à entrevista que o Pintor e Professor Catedrático António Quadros Ferreira teve a amabilidade de nos conceder, na qual faz um excurso por diversos núcleos da sua actividade pictural, instalativa e investigativa, com especial ênfase na sua obra Sem título, de 1972.

RIACT N.4

Tema:
A cumplicidade entre 
a actividade curatorial, 
a investigação artística 
e a criação artística


“Art without Artists?” It was under this alarmist title that, two years ago, the artist and e-flux co-founder Anton Vidokle criticized curators for claiming the status of artists and critics in an inadmissible manner. His finding was not new. It had already been a topic of discussion in the late sixties, when the curator and critic Lucy R. Lippard was accused of using the exhibitions she designed after the manner of the Concept Art of her day to stylize herself as an artist 
who regarded other artists merely as a medium.

Sabeth Buchmann, Curating with / in the system

The 21 st-century curator may also be expected to interact with the press and the public, giving interviews and talks. Curators may be required to participate in fundraising or development activities such as sponsors’ or patrons’ events, and they may be involved in the academic world through partnerships with schools, colleges or universities, providing lectures, seminars, internships or work placement opportunities. As the curatorial profession is continually changing, developing and expanding, so the curator’s range of skills must develop and expand to meet these new challenges and opportunities.

Adrian George, The Curator’s Handbook


Esta edição da RIACT interliga a criação artística, a investigação artística e a curadoria de arte, consistindo num conjunto de textos que relacionam estes três campos de trabalho de forma original e fundamentada. 

É consabido que a curadoria de uma exposição de arte desenvolve uma mediação institucional e pública imprescindível à concretização de uma ideia curatorial previamente delineada. Entre outros aspectos, é a essa articulação que se refere Adrian George na frase acima citada. Porém, se a exposição a que nos referimos consistir na apresentação pública da obra e dos processos criativos de um artista “no activo”, determinado a exibir um conjunto de trabalhos nos quais se envolveu até à exaustão, entrelaçando experimentação plástica e reflexão sobre a mesma, então, nesse caso, a mediação do curador também foi significativamente alargada à esfera de produção e de investigação do artista plástico, com a ideia curatorial a tornar-se inseparável da ideia artística. Ou seja, a mediação curatorial ocupou-se tanto do processo artístico que a podemos considerar de mediação artística (para diferenciar da mediação institucional e pública), conduzindo o artista e o curador para

ambiente de empatia estética, investigação partilhada e co-realização de obra, podendo, em casos radicais, transformar-se numa co-autoria.

De facto, como já foi sugerido, se à elaboração deste processo criativo juntarmos o que há de intrínseco e específico numa investigação artística (com ou sem finalidade académica), então a curadoria de uma exposição de arte torna-se ainda mais densa, interligando os três campos de trabalho em foco nesta edição da RIACT, isto é, o da criação artística, o da investigação artística, e o da produção curatorial. De tal modo assim é que ousamos propor o seguinte silogismo: se a criatividade curatorial se interliga com a criação artística nos momentos propícios à gestação das proto-imagens para uma exposição / investigação, e, se a criação artística autêntica implica uma investigação artística, logo, a ideia curatorial também se interliga com essa investigação, tendo de ser partilhada e igualmente significante para o artista e o curador.

No que concerne às tipologias de curadoria consideradas na RIACT Nº4, foram sugeridas as seguintes possibilidades, sem prejuízo de outras que possam ser igualmente pertinentes:

I — Investigação artística subjacente à curadoria de projectos expositivos cuja materialização é feita por especialistas que não reclamam para si o estatuto de artistas. Por exemplo, uma investigação artística conduzida por curadores de formação e vocação profissional específica em Estudos Curatoriais. Ou então, uma Investigação baseada na criação artística com uma orientação curatorial exercida por filósofos sensíveis, historiadores de arte sensíveis, ou outros especialistas, preferencialmente da Área das Humanidades.

II — Curadoria de projectos de investigação e criação artística desenvolvida por outros artistas, assumindo-se na plenitude o risco de menor distanciamento entre ambos e a possibilidade de transformação do respectivo projecto curatorial numa co-produção com aspectos autorais difíceis de discernir. Por vezes esta modalidade de criação, investigação e curadoria nutre-se na amizade e na reciprocidade existente entre artista-curador (todos conhecemos casos assim), podendo resvalar para um ambiente de condescendência curatorial e frouxidão dos diálogos que estruturam aquilo que se pretende realizar. Porém, desta cumplicidade 

também podem brotar experiências fecundas e surpreendentes de cooperação, nomeadamente se a harmonia intersubjectiva entre curador e artista não der lugar a uma incapacidade de ver criticamente. Para tal é necessário adoptar o princípio habermasiano de que todos os juízos elaborados sobre um processo criativo e curatorial são “pretensões criticáveis à validade”, duradouramente submetidos à experimentação, a exercícios exigentes de intercompreensão (incluindo os silêncios inerentes a determinadas fases da criação e da investigação), e a múltiplas adequações até ao momento da apresentação pública da obra.

III — Curadoria de projectos de investigação e criação artística desenvolvida por outros artistas, sendo que além desta característica, 

os curadores / artistas acumulam ainda a condição da docência do ensino artístico, arrastando consigo uma “presunção maiêutica” que se propaga no projecto do artista que irá tornar pública a sua obra e a sua investigação. Trata-se aqui de uma situação na qual se verifica um indesejado ascendente académico e institucional da parte daquele que assume a função curatorial, sendo necessário que o artista em foco e o curador / artista que o vai acompanhar (sobretudo este), desenvolvam a capacidade recíproca de suspender ou recriar os rituais académicos e as rotinas tácitas da docência, contrapondo às mesmas uma experiência e uma atmosfera de criação e investigação desassombrada.

Esperamos que este conjunto de ensaios possa corresponder aos principais desígnios da RIACT Nº4 e contribuir para a abertura e “provocação” de novos e exigentes debates sobre os temas visados.

RIACT N.3

Tema:
Vídeo e pintura: movimentos paralelos. Investigação artística sobre a imagem-fluxo

I use the term ‘screen-reliant’ as opposed to ‘screen-based’ to signal that a screen is a performative category. Almost anything — glass, architecture, three-dimensional objects, and so on — can function as a screen and thus as a connective interface to another (virtual) space. […] The screen, then, is a curiously ambivalent object — simultaneously a material entity and a virtual window; it is altogether an object which, when deployed in spatialized sculptural configurations, resists facile categorization.
— Kate Mondloch, Screens. Viewing Media, Installation Art, p.2

Paralelamente à necessidade de uma reflexão sensível e actualizada sobre os aspectos que separam e aproximam a investigação artística da criação artística (tema recorrente da RIACT), seja em ambiente académico e universitário, seja nas margens deste, a 3ª edição da revista RIACT tem como horizonte temático a investigação da imagem em movimento dentro do movimento técnico e expressivo da imagem nos campos do video e da pintura (com ou sem preponderância de um dos media implicados), assumindo-se para tal uma orientação clara e aberta de trabalho, a saber: o movimento latente que varre por dentro o movimento formal e plástico de uma imagem, constitui uma característica comum à pintura e ao vídeo. 

Trata-se-á de indagar modalidades de imagens que se conectam incessante e dinamicamente com outras imagens e outros momentos-lugares (simultâneos ou sucessivos), seja nas produções que realizam essa conexão de maneira explícita, algo que espontaneamente aceitamos em relação ao video, seja nas produções que o fazem de maneira mais diferida enquanto experiência de inferência de movimento, algo que no passado caracterizou a pintura. 

Sendo assim, fazendo a suspensão da distinção clássica entre imagem fixa e imagem em movimento, pretende-se que os ensaios para esta edição da RIACT tragam contributos originais e sustentados para a superação daquilo que separa a imagem-fixada da imagem-fluxo, apresentando uma reflexão que se ocupe da existência de um movimento dentro de outro movimento nas duas expressões artísticas. 

Uma vez aceite a possibilidade da oscilação incessante das imagens picturais e das imagens videográficas, deparamo-nos com duas atitudes investigativas, passíveis de interligação: (1) a investigação a apresentar enraiza-se na prática artística, isto é, parte desta para a montagem do discurso plástico, para num segundo momento perscrutar o encadeamento e a formação interna (subjectiva) das imagens que foi suscitada pelas formas e dispositivos externos, e assim sucessivamente, enriquecendo os processos de formação das imagens concretas e a reflexão específica que as mesmas desencadeiam. (2) Ou então, a investigação brota da criação de imagens e da instalação de dispositivos picturais ou videográficos, enfatizando num espaço dado (palpável) o dinamismo e a interferência das imagens e dos espaços criados, seja com os suportes e os materiais convencionais, seja com outros que constituam alternativa para a noção de uma imagem que é um fluxo. 

Se a nossa atenção se dirigir para a expressão videográfica, para além da exploração das imagens latentes que habitam a plasticidade das imagens em movimento, a investigação ocupa-se também da valorização artística de tudo o que existe entre a fonte das imagens materiais e os espectadores-participantes na obra. 

Se, por outro lado, a investigação visar a conexão dinâmica das imagens no campo da pintura, esta pode espacializar-se de modo instalativo, com a criação de diferentes zonas para a intervenção pictórica, sugerindo tempos e percursos diferenciados de apropriação da imagem-fluxo pictural. 

Por fim, se a opção for a interpenetração do video e da pintura, com a articulação criativa de diversas temporalidades e de circuitos paralelos de imersão para os espectadores, o campo tornar-se ainda mais heterogéneo, como bem sugere Jihoon Kim na passagem com que terminamos este editorial:

A more significant impact of digital video on the creation of hybrid moving images that engender the coexistence of painting, photography, and film is temporal manipulation, in that it contributes to oscillation between stasis and motion. Indeed, the dissolution of stillness/movement boundaries dates back to analogue video.
— Jihoon Kim, Between Film, Video, and the Digital, p.64

RIACT N.2

Tema:
A Investigação Artística face ao Nada

“Dealing with the suspense, excitement and body of an organic silence […] the plastic fullness of nothing […].” 
— Rauschenberg, letter to Betty Parsons,
October 18, 1951

“I am here and there is nothing to say. If among you are those who wish to

get somewhere, let them leave at any moment. What we require is silence; but what silence requires is that I go on talking. Give any one thought a push: it falls down easily but the pusher and the pushed produce that entertainment called a discussion. Shall we have one later? Or we could simply decide not to have a discussion.” 
— John Cage, “Lecture On Nothing”, performed at Artists’ Club, Nova Iorque, 1949

Being held out into the nothing — as Dasein is — on the ground of concealed anxiety makes the human being a lieutenant of the nothing. […] So abissally does the process of finitude entrench itself in Dasein that our most proper and deepest finitude refuses to yield to our freedom. 
— Heidegger, What is metaphysics, Lecture from 1929

A 2ª edição da RIACT pretende explorar a força inesgostável da noção do Nada, descobrindo nos intervalos entre a investigação artística e a criação artística, ou seja, perscrutando na sua tensa e mútua assimilação, os indícios do poder de reconfiguração da realidade através dos processos criativos. Foi a partir deste fundo de interpelação que convidámos artistas e investigadores em arte a apresentar artigos e projectos práticos sobre o Nada e a Investigação Artística. As propostas têm origem no campo das artes visuais, no campo das artes performativas, e ainda no espaço de intermedialidade entre ambos. A par da reflexão artística sobre o Nada, também foram exploradas noções afins como as de abismovazio, silêncio, entre outras.

Este número da RIACT também reconduz uma preocupação fundamental que a caracteriza enquanto intensificação da reflexão sobre os sentidos da investigação artística, nomeadamente a indagação criativa das subtilezas que ora aproximam, oram distanciam os gestos criativos dos actos investigativos. Como sugerimos no editorial do número anterior, no limite, em determinados contextos, admite-se que a criação artística ostente uma tal interdependência relativamente à investigação que torne difícil discernir onde uma cessa e a outra começa. Dito de outra forma, existem situações de criação artística de tal forma enleadas em investigação artística que não deixam espaço para cindir o que em conjunto já eclodiu, isto é, que não admitem lances analíticos para rasgar aquilo que num tempo embrionário se formou no indiscernível, e num tempo projectual e já materializado se mantém no indiscernível. Ou seja, situações em que os pontos de contacto entre criação e investigação são múltiplos e impeditivos de separações formais, violentas, muito menos artificialmente académicas. Mas para a defesa pública desta excessiva proximidade entre produção de obras e reflexão em torno das mesmas, iremos necessitar de uma fundamentação incomparavelmente fina e adequada, assim como deontologicamente comprometida e consequente para com os nossos pares de “ofício”.

Vejamos um exemplo radical daquilo que preconizamos como limite possível para a investigação artística. Aqueles que se envolvem de maneira autêntica na criação artística, isto é, que o fazem com paixão, tempo, e intenção projectual, a nosso ver, fazem igualmente investigação. Ainda que a motivação essencial seja a criação embalada pela expectativa da realização de um filme, um concerto, ou uma exposição no fim de um processo artístico consumado, cujo objectivo será a partilha de uma experiência artística, mesmo nessas situações faz-se investigação. Pensemos na indagação que precedeu a realização de uma obra como Le Radeau de la Méduse, de Géricault, ou em toda a produção que envolveu o projecto da Guernica por Picasso. Contudo, sucede que as atitudes investigativas destes autores estão subordinadas aos seus gestos criativos (os rituais artísticos sobrepõem-se aos rituais investigativos) e não têm como primeira preocupação a escolha criteriosa de toda a informação vista, escutada, lida e interpretada, nem pretendem tornar patente — partilhável e explicitável — as metodologias, as fases da experimentação, observação e decisões tomadas no âmbito do processo criativo adoptado. Porém, mencionando agora os criadores do presente, ao serem tocados pela necessidade investigativa (seja por interesse genuíno, seja por interesse profissional e de “carreira”, por interesse académico, ou outro interesse qualquer), tudo se metamorfoseia no sentido dos dois géneros de “rituais” estarem num plano de igual preponderância, exigindo-se uma forma
competente e específica para dar conta da mediação entre ambos. 

São estas, pois, as duas linhas fundamentais desta edição: (1) explorar de forma criativa as subtilezas que ligam, distanciam e de novo religam a criação e a investigação, preocupação que atravessa todas as edições da RIACT e define a sua natureza editorial. (2) Explorar (no fundo, revisitar) a noção do Nada na produção artística e na investigação, elaborando propostas criativas e robustas (como também se afirma na investigação em ciência) que possam “revelar” indícios de formas que brotam desse Nada, de formas que aí se esbatem e fazem corpo com a densidade das proto-imagens, ou então, marcas de como esse Nada sustém e acompanha sempre de perto as imagens ou os gestos artísticos que se materializam no nosso quotidiano.

RIACT N.1

Temas:
Experimentação, temporalidade, dúvida radical 

That art practitioners can be sceptical about
theory — even to the point of developing a misplaced aversion to it — is perhaps not just because some theories seem far afield from the actual practice of art, but also because the performative power of theory competes with the performative
power of art.”
 — Henk Borgdorff, The Conflict of the Faculties.
Perspectives on Artistic Research and Academia

“Traditionally, artists have achieved matter-of-factness through ‘complete familiarity’ with the style, as Igor Stravinsky […] demands of the performer, or, more recently, through what has been called ‘deskilling’ […], a process of unlearning artistic habits, which may, indeed, imply a ‘reskilling’ […] precisely in support of artworks as matters of fact.”
— Michael Schwab, Experimental Systems.
Future Knowledge in Artistic Research

The rooting in an artistic practice is strong, and art-based research often draws on the artists’ experience, professional expertise and creative ability. The research usually proceeds in combinations of systematic, exploratory, creative, experimental, action-oriented and speculative working methods through artistic creation and analysis, staging, simulation and modelling, critical innovation and reflection, and theory formation. 
— Catharina Dyrssen, Artistic Research.
A Subject Overview

A RIACT— Revista de Investigação Artística, Criação e Tecnologia — é uma publicação dedicada à Investigação Artística com edição da FBAUL (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa). A RIACT consiste numa nova fase do projecto de Investigação em Artes do qual se realizaram dez edições, nas quais colaboraram muitos artistas e autores que se ocupam deste território específico de produção e reflexão. Partindo da experiência dos debates e dos feixes de comunicação desenvolvidos entre 2010 e 2020 com muitos especialistas neste campo de trabalho, considerei ser este o momento apropriado para imprimir uma inflexão às actividades desenvolvidas até ao presente, enfatizando o confronto da noção de investigação artística com a de criação artística, acrescentando a ambas a possibilidade de viva altercação sobre a questão da tecnologia e a diversidade dos seus sentidos (tanto da esfera das tecnologias ditas pretéritas, ou seja da esfera que inadvertidamente se considera ultrapassada, mas que no fundo não o está, como da esfera das tecnologias mais actuais e imersivas). 

Caracterização da RIACT

Trata-se de uma Revista de Investigação Artística de natureza
temática, isto é, que lança com uma regularidade semestral uma “chamada de trabalhos” em função de um horizonte comum de reflexão, estando dimensionada para integrar diversas manifestações práticas e teóricas relacionadas com a Investigação em múltiplas expressões artísticas. Na sua estrutura interna a RIACT apresenta duas partes distintas mas complementares de trabalho. A primeira parte consiste na edição de textos e de projectos artísticos submetidos a uma Comissão Científica que realiza uma avaliação por pares duplamente “cega”. A segunda parte da Revista está reservada a outras modalidades de produção de investigação artística, criação artística e pensamento tecnológico, sob a forma de entrevistas, diálogos, informações e outros registos considerados pertinentes para este domínio.

Alterando uma parte da natureza do projecto, redefinem-se também algumas características do seu formato, do seu funcionamento, e ainda, da respectiva disseminação pública. Esta nova publicação será exclusivamente digital, funcionando em regime de acesso incondicionado (open acess), conectável com plataformas existentes para o efeito. Sendo fruto de intensa cooperação internacional, como acima indiquei, integra na respectiva Comissão Científica um conjunto de trinta e quatro especialistas, oriundos de múltiplas instituições europeias e extra-europeias, logo, com perspectivas muito distintas sobre este domínio de trabalho artístico e académico, algo que a meu ver muito contribuirá para a respectiva controvérsia e pluralidade.

Ancorada nesta vasta equipa para realizar uma revisão sistemática por pares, a RIACT é multilingue, no sentido de admitir o português, o inglês, o francês, e o castelhano, porém, sempre com a preocupação de desdobrar os sumários (alargados) dos documentos apresentados numa segunda língua, e ainda, com tradução para inglês do “Editorial”, da “Introdução geral”, do “Meta-artigo”, das “Condições de submissão de trabalhos”, das “Chamadas para trabalhos”, ou outras informações.

À semelhança das actividades desenvolvidas nos últimos dez anos no âmbito deste projecto de Investigação em Artes, todas as edições da revista serão complementadas com conferências internacionais dedicadas aos temas de trabalho propostos, nas quais um conjunto significativo de ensaístas é convidado a apresentar publicamente o seu contributo para a Investigação Artística e para a especificidade dos temas que estão em discussão em cada edição. Procedendo desta forma, creio que se pode enriquecer a investigação artística desenvolvida pelos diversos proponentes, gerando-se a possibilidade de explicitar a peculiaridade das suas motivações e a projecção dos seus argumentos, entrecruzados nas propostas submetidas para publicação.

Orientação fundamental

Tratando-se do editorial do primeiro número da RIACT, permitam-me afirmar a sua orientação fundamental. A revista consiste na apresentação de projectos de investigação que oscilem entre uma prática artística fecunda e a produção complementar de noções que sejam extraídas do envolvimento nos processos artísticos e materiais, assim como extraídas da actividade judicativa que envolve a apresentação pública de situações ou de peças de arte. Neste sentido, a RIACT visa a investigação artística e não a investigação sobre artes, isto é, não se ocupa de filosofia de arte, nem de história de arte, nem de estética, nem de antropologia de arte, entre outras disciplinas afins, embora se entrelace com todos esses domínios de investigação e contemple projectos com essas orientações paralelas, sempre numa perspectiva de confronto e de diferenciação em relação às mesmas, ou seja, numa relação de viva reciprocidade. A RIACT não se confunde, pois, com lances de disciplinas que sobrevoam a plasticidade, a autenticidade e a força da produção artística. Porém, também não se confunde com a criação artística que se obstine em deixar na sombra as seguintes tarefas: 

  1. notória e crescente explicitação de noções artísticas encontradas pelo investigador/criador nos processos artísticos experimentados;  
  2. contributo decisivo para uma compreensão dessas noções pelos espectadores envolvidos na contemplação das situações ou obras de arte apresentadas; 
  3. compromisso com a criação de momentos e a produção de documentos que proporcionem viva e peculiar altercação, na qual os respectivos participantes se inter-reconhecem com competências para ousar conciliar dois aspectos essenciais da Investigação Artística na acepção que esta Revista defende.

Esse esforço ininterrupto de conciliação também pode assumir a possibilidade de explorar de forma intensiva os intervalos entre os dois campos de manifestação, perscrutando a tessitura dessas ligações recíprocas e adversas, oscilando entre dois ou mais conjuntos de condições descobertas num intervalo entre duas expressões distintas, como referem Gunhild Borgreen & Runa Gade na obra Performing archives. Archives of Performance: “Within the theme of Interregnum we encouraged presentations, performances, and other projects that would address the issue of ‘in between states’ — asking questions about how changes and transitions are shaped, and what constitutes the brief moment of instability between two sets of conditions.” 

… oscilação e perscrutação entre o que há de mais intersubjectivo na adesão às situações e às obras de arte, por intermédio de uma entrega comunicacional e de um labor argumentativo (escrito, falado, ou ambos), exigindo uma determinada formalização técnica, seja na sua consistência categorial, seja na espessura da sua linguagem.

… mas por outro lado, talvez estar possuído, experienciando um certo estado de mania, soprados por um ritmo incessante e pendular que nos faz regressar à antepredicatividade da nossa sensibilidade, estando esta sempre aí para impor e intercalar renovados silêncios, para nos inquietar em estados — pontuais ou prolongados — de impotência discursiva, baralhando por isso tudo o que aspiramos balbuciar sobre o nosso adentramento nos fenómenos artísticos.